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NÃO SEJA SÓ UMA DRAG, SEJA UMA RAINHA

Por Giovana Romania e Mariana Pellegrini

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As drag queens são, de acordo com o Manual de Comunicação LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) elaborado pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais - ABGLT, homens que se vestem com roupas tidas como femininas de maneira satírica e extravagante para exercício da profissão em shows e outros eventos.

 

Drag queen, ainda segundo o Manual, não deixa de ser um tipo de ‘transformista’ - indivíduo que se veste com roupas do gênero oposto com fins artísticos -, com a diferença de que a produção das queens necessariamente privilegia o humor e o exagero para apresentações e performances. A questão da identidade de gênero, portanto, não é central na postura drag e a "montagem", isto é, o resultado do ato de se produzir artisticamente e que inclui maquiar-se e vestir-se de maneira específica, é mantida durante algumas horas do dia ou da noite apenas, ou seja, a experiência de se caracterizar como drag queen não é vivenciada em tempo integral.

 

O ato de se montar, se produzir e se transformar é o que significa o drag. Se é queen ou king, depende de a pessoa se vestir de maneira ‘feminina’ ou ‘masculina’, respectivamente. O conceito de drag se aproxima do de cross-dressing (uso de acessórios e roupas associados ao sexo oposto) pela funcionalidade, sendo que este último, para alguns grupos, chega a tangenciar o conceito de travesti, ainda que seja mais comumente empregado no caso de  homens que se vestem como mulheres para satisfação emocional ou sexual momentânea, nem sempre buscando reconhecimento ou tratamento de gênero.

 

A inversão de gênero, tanto para as queens quanto para as drag kings - mulheres que se vestem com roupas masculinas para fins artísticos e/ou de trabalho - tem como mote a diversão, o entretenimento e o espetáculo e não se relaciona diretamente com questões identitárias. É por isso que drags se distanciam das travestis e de homens e mulheres transexuais, que buscam identidade e reconhecimento de gênero.

 

Mas não é por receberem a mesma denominação que todas as queens são iguais. Diferentes estilos e influências se refletem na performance e na persona, por isso é válido dizer que, entre elas, os estilos recebem diferentes denominações:

Shantay, you stay

 

Agora que você já sabe o que é uma drag queen e o que ela faz, você está preparado para conhecer um pouco sobre sua história. Pode-se dizer que os primórdios da ideia de drag queen surgiu na Grécia Antiga, junto com o teatro grego, seus atores e seus personagens. A encenação dos papéis era restrita aos homens que, para a representação de personagens femininos, se transformavam.

 

Foi só a partir do século XIX que as mulheres passaram a ser mais ativas na cena teatral, embora homens performando papéis femininos ainda tivessem mais prestígio. Uma personalidade de destaque na época foi Madam Pattirini (persona do norte-americano Brigham Morris Young, filho do fundador da Associação de Moços da Igreja Mórmon, Brigham Young), cantora que apresentava seus falsetes em teatros de Utah, nos Estados Unidos, entre 1885 e o início dos anos 1900.

 

Com o crescimento da presença das atrizes no teatro no século XX, o vestir-se de mulher por parte de homens mudou: os papéis tornaram-se mais ligados a performances cômicas e a sátiras, e os atores que os representavam passaram a formar uma categoria teatral específica. Assim, a maquiagem exagerada, as vestimentas que parodiavam o estilo da alta sociedade e o humor tomaram conta do cenário drag.

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Julian Eltinge, um comediante estadunidense de grande sucesso na Broadway, representou papéis feminino nos palcos dos primeiros anos de 1900. Na época o vaudeville era um gênero de entretenimento de destaque nos Estados Unidos e consistia numa sequência de números apresentados pelos mais diversos tipos de artistas, incluindo músicos, dançarinos, comediantes, imitadores de ambos os sexos, entre outros. Foi no vaudeville que Eltinge se destacou e sua apresentação, diferente das representações femininas caricatas da época, dava a ilusão de que a figura no palco era realmente uma mulher. Seu sucesso foi tamanho que Eltinge lançou uma revista com dicas de moda e beleza, voltada para o público feminino.

Julian Eltinge em sua persona drag                                                                             Foto: Reprodução//Pinterest

Entre as décadas de 1920 e 1930 estavam em ascensão os chamados drag balls, bailes em áreas degradadas de Nova Iorque que faziam grande sucesso entre o público LGBT, marginalizado socialmente tanto quanto estas festas de que participava. Houve uma onda de popularidade dessas festas, que contavam com a presença de queens e o período recebeu o nome de Pansy Craze. Por volta de 1927, o movimento já tinha se espalhado pelo mundo, tendo se instalado em grandes cidades como Nova Iorque, Paris, Londres e Berlim.

 

Com o surgimento da televisão, o teatro deixou de ser lugar de entretenimento massivo e se tornou espaço de requinte, com destaque para as apresentações musicais. As queens se adequaram ao novo estilo, personificando mulheres de forma mais glamorosa. Os produtos para maquiagem por elas usados passaram a ter maior qualidade e, com a montagem, as queens tendiam a se parecer mais com as mulheres. Foi nessa mesma época, a partir da segunda metade da década de 1950, que começaram as imitações queens de ícones do cinema e da música.

 

Os anos 1960, em pleno período do movimento da contracultura, uma queen se destacou no cinema. Harris Glenn Milstead, mais conhecido como a persona Divine, foi a grande inspiração do cineasta John Waters. Divine tornou-se parte do elenco regular dos filmes de Walters e estrelou Mondo Trasho (1969), Multiple Maniacs (1970), Pink Flamingos (1972) e Female Trouble (1974). A figura de Divine foi tão relevante que sua vida inspirou os documentários Divine Trash (1998) e I Am Divine (2013).

Divine. Foto: Reprodução//PinkNews

Figuras como ela movimentaram o cenário drag nos Estados Unidos e, em 1984, o país foi palco da primeira edição do Wigstock, que passaria a ocorrer anualmente. Queens do mundo todo foram para Nova Iorque participar do festival ao ar livre. A última edição do evento aconteceu em 2005 e ele foi tema do documentário: Wigstock: The Movie (1995), dirigido por Barry Shils.


Ainda que a temática do homem travestido tenha alcançado exposição mundial com o sucesso cinematográfico Quanto mais Quente Melhor, de 1959, estrelado pela icônica atriz Marilyn Monroe e pelos astros Tony Curtis e Jack Lemmon, que se vestiam de mulher para escapar de asssassinos, foi a década de 1990 que figurou como um momento simbólico e representou tempos de mudanças para as queens. Um dos fatores foi o sucesso mundial de Priscilla, a Rainha do Deserto (1993), filme australiano de Stephan Elliott que conta a história de duas drag queens e uma transexual artistas que pretendem atravessar o deserto australiano para se apresentarem em um resort em Alice Springs. O longa trata questões como preconceito, paternidade, discriminação e violência contra o homem que se traveste e foi um marco no cenário LGBT, além de ter conquistado 21 prêmios - dentre eles as honrarias máximas do cinema e do teatro, com as estatuetas do Oscar e do Tony Awards de melhor figurino.

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Notando o fenômeno que foi Priscilla, Hollywood tratou de produzir um filme semelhante, mas que se passasse nos Estados Unidos. Assim surgiu Para Wong Foo, Obrigado por Tudo, Julie Newmar (1994), de Beeban Kidron, que narra a história de duas drag queens que conhecem uma travesti durante uma competição e juntas viajam pelo interior dos EUA. O filme é estrelado por Wesley Snipes, Patrick Swayze e John Leguizamo.


Se atualmente pode-se falar numa maior visibilidade do mundo performático das queens, a ponto de elas figurarem até mesmo em produções da mídia hegemônica, boa parte dos créditos por isso deve ser dada a esses filmes, pois foi a partir dessa época que as performers começaram a ganhar mais espaço na cultura pop.

"Priscilla, a rainha do deserto" (1993) e Para Wong Foo, Obrigado por Tudo, Julie Newmar (1994) .
Foto: Reprodução//Publicity Picture e Pinterest.

Outra grande peça nesse jogo de luzes é RuPaul Charles, popularmente conhecido como RuPaul, talvez a queen mais famosa dos últimos tempos. RuPaul começou a performar em clubes de Manhattan, em Nova Iorque, no começo dos anos 1990. Ao longo de sua carreira, foi vocalista da banda de rock Wee Wee Pole, coroada Queen de Manhattan em 1989, e atingiu reconhecimento internacional com a música Supermodel (You Better Work), gravada em dueto com o cantor Elton John, em 1993. RuPaul foi ainda, durante sete anos primeiro 'rosto’ das campanhas publicitárias da multinacional marca de cosméticos M.A.C., e atualmente é produtora e apresentadora do reality-show RuPaul’s Drag Race, o qual já ganhou dois Emmy Awards. O sucesso do programa rendeu a RuPaul licenciamento de produtos como bonecas, cosméticos, fragrâncias, chocolates e até um jogo de videogame.

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O Brasil acompanhou o cenário internacional impactado pelos sucessos de Priscilla e Para Wong Foo: queens das noites gays paulistana e carioca despontaram como celebridades e, fora dos clubes e boates, passaram a ter destaque em revistas, colunas sociais e programas de televisão. A partir dos anos 1990 nomes como Silvetty Montilla, Márcia Pantera, Nany People, Paulette Pink e Cindy Babado tornaram-se conhecidos e conquistaram status. A televisão foi importante para dar fama às performers: Nany People, por exemplo, foi repórter no programa de Hebe Camargo, no SBT.

 

As queens foram favorecidas pelo crescimento da internet e das redes sociais, fortalecendo sua presença na cultura pop. Hoje elas estão na televisão, no mundo da música, nos canais do YouTube e têm aparecido em desfiles e campanhas de moda de marcas como M.A.C, Marc Jacobs, Jeremy Scott, Betsey Johnson e até numa versão ‘transformista’ da icônica boneca de plástico Barbie. No cenário nacional, estilistas como Alexandre Herchcovitch, Walerio Araújo e Fernando Cozendey vestem queens nas noites e também nas passarelas.

Na área musical, os trabalhos artísticos de algumas performers também estão recebendo mais destaque na mídia. Pabllo Vittar, queen cantora mais conhecida no Brasil desde que sua música Todo Dia foi lançada e vista como um dos hits do carnaval de 2017, tem 6 milhões de seguidores no Instagram e mais de 3,4 milhões de ouvintes mensais na plataforma de músicas Spotify - inclusive seu primeiro álbum, Vai Passar Mal, foi o terceiro mais baixado na plataforma iTunes e nove das dez músicas do álbum estiveram entre as 50 mais tocadas do Spotify, tudo isso só na primeira semana após o lançamento. Desde então Vittar já foi rosto da marca de cosméticos Avon e at[e apareceu em campanha publicitária da Coca-Cola: ao lado de outros oito artistas, teve seu rosto estampado nas latinhas do refrigerante. Realidade de sucesso semelhante é compartilhada pela queen Gloria Groove, que é representante do movimento da periferia na arte performática e traz o movimento para dentro de suas músicas.

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Se hoje se percebe uma visibilidade maior para essa forma de manifestação artística, inclusive ocupando espaços em programas de forte apelo popular ou em líderes de audiência na televisão, pode-se questionar até que ponto a caracterização específica da montagem, com uso de vestuários, maquiagens, perucas e trejeitos próprios, constitui em uma determinada identidade social e permite que se fale até mesmo em uma 'cultura drag', ainda que não se possa dizer que as queens tenham estilos e gostos iguais, pois, afinal, muitas podem até ser bem parecidas, mas não são idênticas.

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Depois deste breve panorama sobre o universo drag queen, aqui vão algumas sugestões de filmes para quem quiser se aprofundar mais no assunto (e se divertir também, é claro):

RuPaul para M.A.C. Foto: Reprodução//Pinterest

MODA E IDENTIDADE NO UNIVERSO DRAG QUEEN

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