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Fotos: Mariana Pellegrini

YOU BETTER WORK, GIRL!

Infográfico: Anna Satie // Fonte: G1

Por Mariana Pellegrini

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“We’re all born naked and the rest is drag”. Em livre tradução - "todos nós nascemos nus e o resto é drag", o jargão de RuPaul, uma das drags mais famosas da atualidade revela muito sobre a cultura drag e as camadas que são colocadas sobre o corpo, não só das drags, mas das pessoas em geral.


Faz a make, afina o rosto, esconde sobrancelha, trabalha o contorno, cola cílios, tenta afinar a silhueta e torná-la mais feminina, veste uma roupa, coloca umas bijuterias e põe a peruca. Pronto, assim se monta uma drag. Sai criador, entra a drag. Tira peruca, troca de roupa, lava a make. Voilà, o criador volta à cena. Pode ser um homem, uma mulher, hétero, gay ou o que quer que seja: drag queens não cabem em caixinhas etiquetadas, são surpresas.

Abba Cashier finalizando o processo de montagem                                                                                Fotos: Mariana Pellegrini

Drag não é sexualidade, drag não é gênero. Drag é performance e drag queen é performar uma imagem feminina. A beleza conta, mas nem sempre. Às vezes o que se sobrepõe é o ‘esquisito’, o diferente, o inesperado. Como uma boa performer, ela tem um figurino, um vestuário que reflete uma identidade. E as roupas fazem parte da moda.

 

A moda, porém, não se restringe a vestimenta. É também consumo e comportamento e pode, até mesmo, ser um estilo de vida. A docente de Moda das faculdades Senac Piracicaba e Faculdades Integradas de Bauru (FIB) Dalila Dias Hayashida, ressalta a importância do que é colocado sobre o corpo: “nós nos mostramos através das roupas que vestimos. Numa interação de 10 a 30 segundos que eu olho para o outro, faço a leitura e consigo entender muitos signos que ele nos traduz.”  

 

De maneira involuntária, as pessoas acabam reparando nas roupas alheias e estabelecendo um prejulgamento do outro por aquilo que ele está ou deixa de estar vestindo. Para Hayashida, vestir-se e passar um significado por meio das roupas é interessante, pois o indivíduo pode se apropriar da moda para ser o que quiser. “A gente pode fazer um personagem de dia, outro à tarde e outro à noite”, afirma a professora. Por isso, o estilo de cada um é um meio de expressão, mesmo que não se fale coisa alguma.

 

E essa possibilidade de ‘fazer’ diferentes personagens ao longo de um dia, conforme afirma Hayashida, atende às necessidades do indivíduo pós-moderno, que tende à fluidez de identidades. Como propõe o sociólogo Zygmunt Bauman, em tempos de modernidade líquida, há uma transformação do mundo moderno, com mudanças facilmente adaptáveis e moldáveis. Segundo ele, as formas de vida moderna seriam vulneráveis e fluidas, portanto, incapazes de manter uma mesma identidade por muito tempo, o que se reflete no estado temporário de relações sociais.

 

Pensando sobre os múltiplos papéis de um sujeito e suas encenações perante a sociedade, o livre-docente em Antropologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP) Claudio Bertolli afirma: “Hoje a pós-modernidade, mais do que nunca, é definida por alguns autores como sendo o tempo das performances, das grandes encenações. Encenações que insinuam algo que necessariamente não precisa ser.”

 

Aí se encaixam as drag queens, artistas performáticas, personas criadas a partir de um indivíduo e acostumadas ao desempenho de papéis que se montam e se desmontam. A performer existe por algumas horas e depois volta a dar espaço a seu criador. “Vejo que muitas drag queens fazem questão de mostrar que, no cotidiano, fora das pistas, fora das casas de espetáculo, dos shows, são cidadãos comuns. Quer mostrar que no privado eu sou uma pessoa bem diferente do público”, reflete Bertolli.

 

O estímulo que vem da fugacidade do instante impulsiona o indivíduo a procurar por várias identidades. A moda e o vestuário, sendo meios de formação e expressão de identidade, acabam sendo alguns recursos utilizados pelo sujeito para mostrar-se, revelando os seus modos de ser e estar no mundo. Surge daí a necessidade de demarcar os limites dos vários papéis encenados.

O performer Caio Riscado ressalta que a performance drag, tanto das queens quanto dos kings (a versão masculina das drag queens),  não se limita ao binarismo, ou seja, extrapola a dicotomia masculino/feminino e é capaz de flertar com outros tipos de construção e linguagem: “Existem drags [queens] que performam seres fantásticos, místicos, animais, vegetais, deuses, deusas e, até, objetos”, afirma.

 

Avaliação semelhante tem a performer gaúcha Alma Negrot, personagem de Rapahel Jacques. Para ela a queen não é, necessariamente, “ uma performance que inverte gêneros, mas um lugar de ressignificação do corpo” e a representação artística do queer. Alma acredita não ser possível falar de drag sem falar de gênero, uma vez que a performance seria uma “blasfêmia contra a binaridade de gênero”. A drag queen critica a binaridade por considerá-la responsável por exercer, nas pessoas, “a obrigação de sermos e compramos quem a Bíblia Sagrada ou os livros de Ciência mais retrógrados nos impõem”.  


Mas nem toda queen está interessada em manter uma identidade humana. Alma representa as tranimals, artistas que buscam inspiração na arte surrealista e se montam performando seres fantásticos tentando se distanciar das formas humanas: “Costumo dizer que a Alma não é uma personagem que crio e sim o trânsito de tudo aquilo que eu gostaria de ser. Eu posso me sentir um minúsculo vagalume intergaláctico ou uma feiticeira de três metros de altura”, descreve. Ele afirma que não se maquia para “pra mostrar beleza”: “Eu quero me mostrar do avesso e contar histórias”. Sua queen é uma mistura de tinta, sucata e “objetos malucos” que são colocados em seu rosto.

Por que usar materiais não óbvios na elaboração da persona? A explicação de Alma para sua constituição como personagem é complexa e completa: “Misturando materiais inusitados e criando seres fantásticos, a intenção é criar confronto com a norma vigente. Rompendo barreiras de gênero ou do conceito de ser humano, as performances carregam um apelo ao questionamento do corpo lúdico com o ambiente ou recriam alguma  conexão espiritual criativa. As imagens carregam discursos que chegam de diversas formas no espectador. O que importa é que cause questionamentos”.

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Dragativismo

 

Ao se apropriarem do vestuário feminino e de outros elementos de tais universos para a incorporação da personagem, as queens estão, segundo o pensamento da filósofa Judith Butler,  parodiando o desempenho de gênero, resistindo a estruturas de poder regulatórias e ridicularizando as expressões e performances culturais normativas.

 

A doutora em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP) e professora de Psicanálise na UNESP Patrícia Porchat, concorda com a visão de Butler quanto a gênero ser performance. Ao refletir sobre o processo de montagem das drag queens que buscam trazer à tona uma representação por vezes exagerada de feminino, Porchat afirma que tal performance está ligada a um estereótipo sobre o que seja esse gênero: “São um estereótipo de mulher. É uma feminilidade bastante restrita e ligada à sedução e à beleza.”

 

O professor Claudio Bertolli compartilha desse pensamento: “A drag queen ao mesmo tempo cria uma hiperfeminilidade, um estereótipo da mulher. Esse estereótipo pode chegar a um ponto tão radical que, na verdade, às vezes não é que a drag seja machista, mas ela está querendo mostrar o ridículo da feminilidade, dessa feminilidade exaltada. É aí que você tem o hiperbólico.” De acordo com o docente, ainda se cobra da mulher um padrão de feminilidade e sensualidade, enquanto do homem não se cobra uma masculinidade exaltada desde os anos 1960.

Drag queen se apresentando na parada LGBT+ de Bauru                                                                       Foto: Mariana Pellegrini

Diante da discussão tão atual sobre gênero e identidade, ainda mais em tempos de polarização e intolerância política, religiosa e de costumes como se verifica no contexto brasileiro atual, seria a montagem drag um ato político? Para Bertolli, pode-se dizer que sim e que não. Drag pode ter um cunho político no sentido de se querer quebrar uma visão de mundo, de hegemonia masculina propriamente dita, mas a montagem pode ser uma diversão da pessoa e nada mais, analisa.

 

Samuel Abrantes afirma que sua criação, Samile Cunha, não tem uma pretensão política, ainda que acabe levantando a bandeira das drag queens. “Me monto como forma de representação, de brincadeira, de possibilidade de vir a ser. É sempre da ordem do lúdico, do teatro, da ordem do riso, é uma brincadeira.” A Samile é, segundo ele, mais uma forma de expressão do ator, figurinista e professor Samuel Abrantes. “É mais uma possibilidade de eu me colocar no carnaval, no teatro, nos vídeos”, afirma.

 

Segundo uma percepção do próprio docente, ao participar da cena universitária nas faculdades Belas Artes, Comunicação e Letras da UFRJ, as drag queens contemporâneas estão encarando o movimento como político, visto que estão levantando a bandeira contra o preconceito de gênero e o binarismo masculino/feminino. “Até acho que nao veem mais como caricatura e sim como forma de viver, de dia-a-dia. Nesse sentido há uma forma politica de manifestação”, explica.

 

O performer Caio Riscado também compartilha da opinião de que drags não podem ser rotuladas como socialmente engajadas e “desconstruídas”: “Se uma drag fará uma militância pela desconstrução de gênero e, por exemplo, pelo direito da população trans, isso diz respeito ao seu posicionamento político.” Caio ressalta ainda que fazer drag não diz nada sobre uma pessoa e nem a localiza no que diz respeito a seu caráter ou pensamento ideológico.


Opiniões diferentes têm as drags Nina Codorna, Abba Cashier, Georgia Herrera e Alma Negrot. Elas acreditam que estar in drag representa um posicionamento diante do mundo. De acordo com Nina, o fato de um homem colocar uma peruca na cabeça já constitui um ato político por si só, ainda que seja por meio da arte. “Acredito que a arte drag está para questionar os padrões impostos socialmente e tenho um apreço muito grande quando, através da arte, você também se manifesta politicamente”, avalia.

Detalhe de uma queen durante a parada LGBT+ de Bauru                                                                                   Fotos: Mariana Pellegrini

Abba Cashier fala que, ao ir montada como drag a um lugar normativo, ou seja, a espaços em sua maioria frequentados por pessoas que se apresentam de maneira adequada ao binarismo de gênero, não tem o feedback de beijos, abraços e pedidos de selfie que teria em uma boate ou outro local frequentado majoritariamente por pessoas LGBT+. Segundo ela, há as pessoas que serão “escrotas” e podem gritar ou criticá-la, como tentativa de intimidação. Mas há também as pessoas que não expressam qualquer reação porque não sabem lidar com a situação. Neste caso o impacto causado pela sua presença queen é invisível aos olhos, mas, ainda assim, é político.

 

“É difícil sair na rua, é difícil chamar a atenção, mas eu pelo menos tento me lembrar, quando fico desconfortável, que provavelmente está tendo um impacto muito mais positivo do que consigo ver. Cada vez que você sai na rua, você não sabe quem você vai encontrar, como as pessoas vão te tratar, como você vai se sentir, e isso tá na cidade, é imprevisível, dá adrenalina. Tem pessoas que gostam disso e tem pessoas que aprendem a lidar [com isso]”, revela.

 

A drag queen Georgia Herrera reforça a questão do imprevisível. Segundo ela, a partir do momento em que alguém se monta, está totalmente exposto a julgamentos e carrega o potencial de causar debate, não só para a sociedade como para si mesmo. Georgia fala também sobre toda uma discussão interna: “Acho que não só para a sociedade, mas para si mesmo. No momento em que você decide se montar e tem o contato com essa personagem, essa drag, existe toda uma discussão interna, uma claridade de opiniões, reflexões e identidades.”

 

Alma Negrot reflete sobre o fato de todo tipo de trabalho sensível ou associado ao estereótipo feminino ser negado aos corpos socialmente designados “masculinos”. “Para a sociedade, quando um homem faz ‘coisas de mulher’, ele abdica de poder, ele desce de nível”, afirma. De acordo com a drag, ela e o coletivo Queeridas, do qual faz parte, entendem o ato de transformar o corpo “como uma expressão híbrida contra binariedade de gênero e demarcação política da população LGBT na cidade.

MODA E IDENTIDADE NO UNIVERSO DRAG QUEEN

Queens durante a parada LGBT+ de Bauru                                                                                                                 Fotos: Mariana Pellegrini

O professor e drag queen Samuel Abrantes (sua personagem é Samile Cunha), da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), compartilha do pensamento de que as pessoas estão desempenhando papéis e construindo identidades o tempo todo. “Eu até acho que a vida é teatro e representação”, avalia.

 

Tendo experiência no teatro, além das suas habilidades para se transformar em Samile Cunha, Abrantes explica que o figurino é essencial no processo drag. “O figurino é o primeiro passo, é a casca, é a primeira camada da cebola. Acho que é fundamental o exercício de construção da identidade a partir do figurino”, afirma. Essa importância decorre do fato de o figurino ser um recurso concreto e real, com textura, tecido, modelagem, forma e cor, que nos identifica e possibilita o reconhecimento no grupo, na sociedade ou até mesmo no outro, explica o professor.

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She owns everything

 

Para uma queen, as suas roupas são tão importantes quanto sua make, sua peruca ou seus acessórios. O vestuário merece tanto destaque que é um dos quesitos avaliados pelos jurados, assim como a maquiagem e as apresentações de dublagem, canto dança e desfile no reality show RuPaul's Drag Race, comandado pela queen RuPaul e que tem o objetivo de escolher a próxima superestrela entre as drag queens dos Estados Unidos. Estilistas renomados como Jeremy Scott, diretor criativo da grife Moschino, e Marc Jacobs,idealizador da grife que leva seu nome já participaram de alguns episódios, integrando a comissão de jurados do programa.

 

Jeremy Scott e Marc Jacobs são, por sinal, dois dos grandes nomes da moda que influenciam e se deixam influenciar pelas drag queens e estão sempre atentos ao universo drag. O flerte das queens com a indústria da moda não é novidade. Julian Eltinge, uma performer de grande sucesso no início dos anos 1900 que se assemelhava tanto a uma mulher a ponto de criar a ilusão de ser uma, lançou na época uma revista voltada ao público feminino dando dicas de moda e beleza.

 

As queens dos anos 1950 e 1960 tendiam a se parecer mais com mulheres e se deixavam influenciar pelo cinema e pela música, sendo Marilyn Monroe um dos grandes ícones imitados pelas transformistas da época. Entre 1970 e 1980, o estilista Jean Paul Gaultier, conhecido como enfant terrible da moda por manipular humor e misturar gêneros e épocas em suas criações, propôs o ‘culto dos corpos’ e colocou uma miríade de identidades - englobando hipersexuados, drag queens e trangêneros - vestindo suas roupas, numa exploração incomum nos padrões da moda.

 

Na década de 1990 a estrela de RuPaul começa a brilhar e a queen, que é modelo, cantora, autora e atriz foi a primeira garota-propaganda da M.A.C., Cosmetics estrelando a coleção Viva Glam. Duas décadas à frente, Latrice Royale, performer que participou de RuPaul’s Drag Race, foi convidada especial da marca para a cerimônia de abertura da maior loja M.A.C. do Brasil.

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Desde então, as artistas têm aparecido cada vez mais como modelos e convidadas em desfiles e campanhas publicitárias, frequentando o "tapete vermelho" das premiações e do show business, figurando como musas de fotógrafos de editoriais e publicidade de moda, como David Lachapelle e Steven Meisel e estampando páginas das principais publicações de moda e cultura pop, como a revista Vogue (caso de Violet Chachki, vencedora de uma das temporadas de RuPaul’s) e outras publicações do setor.

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A estilista da grife MiuMiu, Miuccia Prada, inspirou-se na estética clubber da década de 1990 e nas queens para a criação das peças do desfile Resort 2016. Ex-competidoras de RuPaul’s, Violet Chachki, Miss Fame e Pearl, foram convidadas para a festa de lançamento das roupas. Marc Jacobs convidou a queen Milk, também vinda de RuPaul’s, para sua campanha primavera-verão de 2016 e para posar nua na campanha em prol do NYU Cancer Institute.

Assim como as cores, o modo de se vestir e a androginia inspiram criadores das grandes grifes, as queens também apresentam influências externas em seus looks: moda e arte são grandes inspirações e referências para alguns criadores quando vão imaginar e construir sua personagem drag. Esta permite que seu criador explore um lado que talvez não se sobressaia tanto na personalidade original e busque se diferenciar no seu meio.

 

Um desses casos é o de Mitchell Cutmore, bacharel em Artes e líder de negócios e mensagens globais da Telefônica no Brasil, que performa a queen Abba Cashier desde o Carnaval de 2015. Segundo Cutmore, é possível perceber estilos diferenciados entre ele e sua personagem, ou seja, entre o criador e sua criação: o fato de Abba vestir-se com cores chamativas, principalmente rosa, laranja, amarelo, verde e roxo paulatinamente levou Cutmore a adotar um estilo mais sóbrio e sofisticado e atualmente, na paleta de cores de seu vestuário, sobressaem o branco, o vermelho e o azul.

 

Abba tem como uma de suas principais inspirações o estilista estadunidense Jeremy Scott, diretor criativo da Moschino que tem a fama de ser ‘o designer mais irreverente da cultura pop’. “Gosto de fazer coisas bem no estilo dele, estampas bem humoradas, cheio de cores e com influência do gênero musical new rave, meio no estilo pop-art, que são bem coloridas”, afirma a drag. Para Abba, Jeremy Scott “tem tudo a ver” com o estilo dela.


A performer Nina Codorna é de Salvador (BA) e, quando está out of drag é artista visual, fotógrafo, designer e diretor de arte em uma agência de publicidade. Nina vê seu processo criativo de montagem como “variável, mas sempre construtivo e um eterno aprendizado”. As artes modernas e contemporânea são as maiores inspirações de Nina no âmbito das artes visuais e do design. O fotógrafo estadunidense David Lachapelle, conhecido por sua fotografia hiper-realista editorial e publicitária contemporânea, o casal francês Pierre e Gilles, que formam a dupla de fotógrafos e artistas Pierre et Gilles, o fotógrafo, cinegrafista e maquiador Ryan Burke e a drag Milk, participante da sexta temporada de RuPaul’s Drag Race, são algumas referências utilizadas por Nina na hora de se montar.

A moda, do ponto de vista da artista, sempre influencia a identidade da queen e suas últimas inspirações vêm do estilo kitsch e do Memphis Design, estilo de design de mobília do grupo italiano - The Memphis Group - e movimento precursor do design pós-moderno. Nina opta por maquiagens elaboradas e uso excessivo de cores na sua identidade, mas “não gosta de ditar regras e criar preferências”, pois segundo ela, tudo depende de seu processo criativo. A moda seria uma forma de se expressar através do que veste “e que vai além de um conceito de tendência mercadológica”, na visão de Nina.

 

Como existem vários estilos de queens, a variedade de referências é grande. Uma das donas da marca Von Destroyer (cujas peças são feitas artesanalmente e voltadas para o mercado de queens e de figurinos), Ramona Von Destroyer, por exemplo, performa há dois anos e buscou referências no Japão e no mundo nerd/geek para montar seu estilo. Ainda que seja dona de uma marca de roupas e crie e customize tudo o que veste, ela não é estilista.

 

Ramona se define como “uma personagem de RPG de batom” e diz ser muito difícil se inspirar em outras queens, embora admire o trabalho de muitas, pois prefere se manter na área nerd. Moda é “aquilo que te faz bem e você se expressar daquela forma, sem deixar nunca de lado o conforto”, afirma, embora ressalte que não há conforto na situação drag queen.

 

Pode-se notar a influência das queens na moda brasileira também. Alexandre Herchcovitch é um estilista de renome que trabalha com queens há anos e até mesmo vestiu duas performers em um capítulo do seu programa Corre e Costura!, exibido na emissora de televisão SBT. A Casa de Criadores, evento lançador de novos estilistas do Brasil, é um ambiente inclusivo e tem adeptos das performances drag. Os estilistas Walerio Araújo e Fernando Cozendey vestem queens nos seus ateliês e já apresentaram coleções desfiladas por performers, como a de 2013 de Araújo e a coleção "T" (transitar, transgredir, transcender e transformar-se) de Cozendey, apresentada em 2015.

 

Don't matter what you wear

 

De acordo com Claudio Bertolli, livre-docente da Universidade Estadual Paulista (Unesp), há uma postura social que impõe as separações de gênero em masculino e feminino, inclusive no vestuário. A moda agênera busca “misturar e confundir” tal postura e a roupa é uma “confidência, um dos principais itens para reivindicar o gênero”. Ainda que exista o movimento da moda agênera, o docente acredita que a moda não está mais tão atrelada a uma manifestação política.

 

Houve, na visão do professor, uma função política da moda, mas esta “parecia ficar mais clara nos anos 1960 e 1970, nos quais se percebe efetivamente esse tipo de comportamento”. Tendo deixado para trás o affair com a política, a moda hoje em dia se mostra muito mais ligada à ecologia e à vida saudável do que “atrelada ao princípio político”, avalia.

 

Em contraponto à visão de Bertolli, o professor Samuel Abrantes acredita que a moda pode sim ter esse papel: “a moda funciona como ação política no exato momento em que a gente escolhe, a gente elege o look A em detrimento do look B”, afirma. Para ele, as escolhas representam uma manifestação da identidade do sujeito, do seu desejo e de suas atitudes e a moda funciona como referencial dessas ações, logo, é uma ação política.

 

O fato de a indústria da moda estar ultimamente explorando a diversidade de gêneros, a expressão agênera e até as drag queens na passarela - como fazem marcas gringas como Marco Marco, Jeremy Scott e Marc Jacobs - lança questionamentos sobre o papel da moda como influência para a quebra de padrões de gênero.

 

O diretor teatral, performer, professor, produtor e doutorando em performance na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Caio Riscado e o professor Samuel Abrantes acreditam que esse movimento dentro da indústria da moda está mais ligado a uma estratégia capitalista de venda do que realmente preocupado com a inclusão da diversidade de corpos e gêneros no segmento, ainda que haja mérito na exposição das diferenças que os desfiles promovem.

 

“Eu, particularmente, não vejo a moda como um mercado potencialmente e verdadeiramente engajado na luta pela valorização das diferenças. Assim como todo mercado, a [indústria da] moda está atenta às discussões da atualidade e procura, muitas vezes de forma equivocada, aliar essas narrativas a suas criações e produtos”, afirma Riscado.

 

Já Abrantes acredita que a moda é ampla, plural e que “no momento em que se torna globalizada ela pode ser sim um veículo de manifesto de quebra de papéis.” Ainda que uma série de movimentos tenham sido vistos nas passarelas, com rapazes vestidos de mulheres, bem como  drags e mulheres usando roupas masculinas nos desfiles, o docente afirma não saber se isso pode ser considerado uma forma de protesto e pensa que pode ser, na verdade, uma maneira de difundir a moda, tornando-a plural. “Acho que é menos manifestação política e mais tentativa de atender a todos os papéis e gêneros”, reflete ele. “A moda se utiliza do ‘filão’ da questão da diversidade e joga na passarela, acho que é um movimento posterior”, afirma.


 

Sissy that walk

 

A performance drag queen não tem relação direta com a identidade de gênero. De acordo com a filósofa Judith Butler, pioneira e referência mundial da teoria queer, o gênero é fruto do que fazemos e não do que somos, pois é uma performance vinda de uma construção social. O gênero constituiu-se por meio de ações repetidas, performadas, com manifestações constantes, afirma O corpo, na visão da filósofa, não é uma fundação estável para expressão de gênero. Ainda assim, parte da sociedade ainda vê a questão de gênero sob a ótica binária, ignorando a teoria queer e a variedade de gêneros entre masculino e feminino.

 

E foi justamente por serem performáticas que as queens chamaram a atenção da filósofa. No livro ‘Problemas de Gênero’ , Butler defende a teoria de que a identidade é moldada através de performatividades de gêneros. As artistas, na visão da pesquisadora, são uma paródia do desempenho de gênero, ridicularizando as expressões e performances culturais que norteiam as identidades masculinas e femininas. Vale ressaltar aqui que, por transgredirem as normas binárias (masculino e feminino) regulatórias impostas pela sociedade, as queens significam também um posicionamento político.

Infográfico: Anna Satie // Fonte: G1
Drag queen Milk em anúncio de Marc Jacobs                                                                 Foto: Reprodução/Twitter Marc Jacobs
Autorretrato com maquiagem artística de Ryan Burke                                                                          Foto: Ryan Burke/Pinterest
Alma Negrot em uma das suas muitas composições visuais                                                             Foto: Pedro Loreto/Pinterest
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