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"O importante é ser você, mesmo que seja bizarro"

Por Giovana Romania

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“Drag queen” nunca foi uma temática tão recorrente nos meus pensamentos. Claro que já vi muitas delas ao longo da vida, mas se alguém me perguntasse na lata “o que é uma drag queen?” talvez eu não soubesse muito bem por onde começar a responder. É um homem vestido de mulher, como diz o dicionário, mas às vezes não. É uma representação de uma feminilidade extrema, mas às vezes também pode não ser. Em meio a tantas dúvidas, o caminho mais fácil era perguntar diretamente para uma, ou para várias drag queens.

 

“Eu acredito que ser drag queen é uma arte que te liberta, é uma arte que te permite ser quem você quiser e que não te prende aos gêneros masculino e feminino. Você pode se tornar algo abstrato, algo que fuja da figura humana comum”, diz Georgia Herrera, queen que faz parte do grupo Soul Drag, de Bauru (SP). Já para a estilista Ramona Von Destroyer, o que começou como diversão, agora é profissão. “Ser drag queen atualmente para mim é tudo”, me conta. A Ramona é de São Paulo e tem uma loja chamada Von Destroyer, onde vende suas criações como peças de roupas, acessórios e tudo o que a imaginação puder alcançar. Foi perguntando para essas pessoas e ouvindo suas respostas que percebi como a palavra “arte” é recorrente no universo das drag queens.

 

Para o professor Cláudio Bertolli, livre-docente em Antropologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), não se pode usar o conceito de 'arte' para se referir à estética e à ação drag sem correr o risco da imprecisão conceitual. “É muito difícil dizer que uma coisa é arte ou não é. Se eu pensar arte como um exercício estético, eu posso afirmar que as drag queens performam arte. Se eu pensar arte como uma estratégia singular para favorecer ou instigar quem consome a obra a questionar o mundo em que vive, será que é? Isso depende muito do individual de cada drag queen e de quais são os objetivos”, afirma o professor. Atualmente, é muito comum ver drag queens em programas de televisão e no mundo da música, como, por exemplo, o globalmente famoso RuPaul, veterano que domina o meio das queens nos Estados Unidos desde os anos 1990, e, recentemente, a brasileira Pabllo Vittar, a qual registrava mais de 3 milhões de ouvintes mensais no Spotify, da última vez que chequei. O cenário da música pop é o que claramente tem a maior exposição midiática, mas as queens construíram um mundo quase alternativo, no qual usam seus corpos, roupas, perucas e maquiagem para erigir uma estética particular e chamá-la de 'arte'. A própria Ramona, de quem já falei anteriormente, é um exemplo disso: ela costura roupas, produz acessórios e leva essa estética para o mundo ao comercializar os itens.

 

Foi perguntando que também descobri que todo processo para se tornar uma drag queen começa com uma influência ou inspiração. Para algumas são as próprias queens que influenciam; para outras, são mulheres que se vestem de forma diferenciada e chamativa, ou seja, fora do comum do que é considerado feminino, com a representação estereotipada da delicadeza e da sensualidade da mulher. A DJ e performer Abba Cashier é britânica e se mudou para o Brasil há pouco tempo. Foi no país, dois anos atrás, que a coragem de se apresentar para o mundo surgiu. Ela me contou que a atriz Uma Thurman foi seu primeiro modelo de inspiração. “Eu sempre gostei muito da [personagem] Hera Venenosa, da Uma Thurman. Principalmente porque eu amo a atriz, acho ela uma pessoa que não é convencionalmente linda. Ela tem um rosto diferente, é super alta e tem aquele pé gigantesco, mas ela tem uma coisa misteriosa que acho muito interessante, super exagerado, dramático. Achei que essa personagem de Thurman não estava se levando a sério, que para mim é um fato de que gosto na arte drag queen”, contou Abba em uma conversa enquanto ela se maquiava antes de mais um evento do seu projeto Drag Therapy.

 

Antes de eu contar o que é o Drag Therapy, preciso de um momento para descrever Abba: alta, muito alta. Ainda mais depois do salto que colocou. O nome é uma brincadeira com a fruta abacaxi (Abba Cashier), com a banda ABBA e com o emprego de sua mãe (quem trabalha em caixa em inglês é cashier). A roupa, feita por ela mesma, consistia em blusa e saia rosas com uma textura que lembrava uma cauda de sereia. Nas pernas uma legging com cápsulas de remédio estampadas, peça perfeita para combinar com o logotipo do projeto. Maquiagem feita com olhos bem escuros. Não era perfeita, mas era bem drag queen… pelo menos essa foi a impressão que tive. Para completar o look, um jaleco branco e óculos, partes da personagem que é uma terapeuta.

Será que não é mesmo uma terapia?

 

Abba contou que, conforme alguém começa a se montar e a se expor publicamente, é possível que fique conhecido em alguns lugares, seja convidado para entrevistas e a pergunta de “por que você faz isso?” se torne constante. “Isso vem com tanta frequência que ou você tem que preparar uma resposta fixa ou brincar com essa pergunta”, diz. Ela decidiu brincar. “Eu achava que estava sendo engraçado quando falava que era terapia. Aí cada vez que alguém vinha me perguntar, eu dizia ‘nossa, pra mim é terapia’. Só que depois da terceira vez eu pensei ‘será que não é mesmo?’”, conta. O projeto Drag Therapy começou como se fosse um cursinho no final de 2015. Era uma série de rodas de conversa para “ajudar as pessoas a enxergarem os vários pontos que devem ser considerados nos processos de montagem”.


A ideia de Abba, segundo ela, era pesquisar e recolher evidências sobre o fato de a montagem poder fazer bem para a saúde. Além disso, a ideia era também “desenvolver ferramentas e oficinas dinâmicas que possam ajudar pessoas, que talvez nem se montem, a ter os mesmos benefícios”. Em 2017, Abba começou a fazer o que chama de DragLab. “São workshops com temáticas diferentes, alguns ajudam quem está começando a se montar, outros quem já se monta há anos”, explica a queen. Ela pensa em expandir tudo isso, e espera que, já para os próximos anos, o conceito da terapia em que se baseia o projeto chegue em ambientes de grandes empresas, focando na questão da diversidade, ou seja, na oportunidade para pessoas da comunidade LGBT+. A proposta é “explicar porque as pessoas se montam, o que elas ganham com isso e porque são coisas que poderiam ajudá-las”, afirma. Afinal, “os princípios drag queen são essa questão de trabalhar um alter ego que, em vários momentos, pode te ajudar, e também de você ganhar seu espaço na cena em que você estiver”, conclui.

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De Victor a Jessie

 

Alter ego. Segundo a professora Patricia Porchat, doutora em psicologia clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP) e docente da UNESP, o alter ego é um “eu alternativo”. Logo, “a queen pode ser considerada um alter ego da pessoa”. “Muitas pessoas que se montam têm essa ideia de um novo personagem, além de si próprio”, afirma a psicóloga. Segundo ela, seria uma forma de transgredir aquele papel tradicionalmente desempenhado no meio social em ambientes como o familiar e de trabalho e dele escapar. “Montar-se como drag queen seria uma fuga e uma estratégia para sair dos papéis e, de repente, encontrar uma maneira de expressar e dar vazão a tudo isso”, completa Porchat.

 

Porchat também acredita que “a queen esteja bastante associada a uma questão estética, de exibição de uma personagem”. Essa personagem seria “a ideia de um reconhecimento de si quanto a uma determinada forma de se expressar”. Então, seria toda aquela maquiagem, peruca, roupa, brilho, glitter e performance apenas uma máscara? Uma desculpa, uma saída, um grito por uma liberdade muitas vezes tirada pelo eu próprio da pessoa?

 

Comecei esse texto questionando o que são drag queens, passei a visão delas, da arte e até mesmo de terapia. Mas um alter ego, uma personalidade completamente diferente, um personagem, foi tudo isso que eu enxerguei no dia 10 de novembro de 2017, ao acompanhar o processo pelo qual o maquiador Victor Munhoz de 21 anos, virou Jessie. Foi uma daquelas experiências que te dizem muitas coisas, mesmo quando as palavras são poucas. A ideia inicial era fazer uma entrevista enquanto ele se montava para que algumas imagens pudessem ser captadas. Mas, conforme o processo ia se desenrolando percebi que havia algo a mais em tudo aquilo, que ia além da superfície das roupas e da maquiagem. O “tornar-se” drag queen ultrapassava o físico para ser uma mudança interior.

 

Eu e Mariana, minha companheira de trabalho, chegamos para a entrevista no começo da tarde. Assim que entramos no condomínio onde Victor mora, fomos recebidas por um jovem de 21 anos que naquele momento usava chinelos, bermuda, camiseta e boné pretos. Bem simples, monocromático e comum. Esse era o Victor. Ele nos levou até seu apartamento e lá não pude deixar de notar duas coisas: a coleção de DVDs com temática de terror e a quantidade de maquiagens colocadas sobre a mesa da cozinha/sala.

 

Com todos acomodados, Victor começou uma jornada que duraria cerca de três horas: a montagem. As sobrancelhas foram as primeiras, pois a pele já havia sido hidratada e limpa antes de chegarmos. A cola de bastão tenta esconder os pelos da sobrancelha real. “Em dias de show eu uso um outro produto, que é parecido com uma massinha. É mais eficaz que a cola”, comenta, em meio ao processo. O pó é substituído pelo talco, “eu prefiro”, diz. Um pouco de cola, um pouco de talco e repete. A sobrancelha parece ser um dos momentos mais complicados. “Uma vez eu estava atrasado e minha mão coçou para pegar a lâmina e raspar minha sobrancelha”, conta.

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​Terminado o processo de esconder uma, começa o de desenhar outra. Paciência parece ser mais do que necessária (eu provavelmente já teria desistido na cola...). “O meu processo de montagem sempre começa pela sobrancelha e depois o olho, porque daí na hora de fazer a pele eu tenho mais tranquilidade e já posso limpar o que caiu do olho”, explica o maquiador. Ao terminar o desenho da sobrancelha, mais talco e a ação toda se volta para as pálpebras, que aumentaram um pouco de tamanho, já que a sobrancelha subiu um pouco para a testa. A parte mais bruta do olho é feita, dando espaço agora para os contornos e um pouco de base.

Foto: Giovana Romania

Conforme as formas se afinam e uma parte minuciosa do olho começa, com a aplicação de sombra e detalhes com delineador e lápis, consigo enxergar a Jessie pela primeira vez. Não pela maquiagem propriamente dita. Claro que os traços mais femininos ajudam, mas não é só isso: a maneira como Victor pausa e se olha no espelho mudou. Os movimentos da boca e dos olhos também. É nesse momento que perguntamos: “você consegue enxergar uma diferença clara entre Victor e Jessie?”. A resposta é imediata: “sim”. “Eu mudo completamente”, continua. “Eu, como Victor, sou muito tímido, e a Jessie me ajudou a superar um pouco dessa timidez. Funciona um pouco como uma máscara”, completa.

 

Com os contornos feitos, os olhos começam a tomar cor: um vermelho misturado com amarelo, quase laranja. Eu noto que o Victor fala da Jessie na terceira pessoa, e vice-versa. Pergunto e ela confirma: “quando eu estou desmontada eu falo da Jessie como se estivesse falando de outra pessoa”. Agora fica a dúvida: ela ou ele? Em qual momento a linha tênue some e Victor vira Jessie? “Durante o processo de montagem fica um meio a meio, eu sinto que ela chegou no momento em que eu coloco a peruca. Porque a peruca é o que transforma mesmo”, explica, por enquanto, Victor.

 

O rosto toma forma. Os olhos estão prontos, a pele está quase, é hora de mexer um pouco na boca. “Minha maquiagem preferida é nude, com um glitter, bem simples”, vai contando. Um pouco mais de talco, um pouco mais de base e um retoque no contorno. Tudo parece pronto. “Agora os cílios, vou lá buscar”, disse enquanto saía para buscá-los. Voltou com uma caixa com algumas opções, optou por cílios bem longos. Essa parte dá trabalho também e, mais uma vez, a paciência é vitoriosa. Já são, pelo menos, duas horas e meia se dedicando à maquiagem. Cílios colocados, finalmente chegou a hora da peruca e da roupa.

MODA E IDENTIDADE NO UNIVERSO DRAG QUEEN

Foto: Giovana Romania
Foto: Giovana Romania

Victor foi até o quarto se trocar, voltou alguns minutos depois vestindo uma meia-calça cor da pele e uma saia curta preta. A partir deste momento, mesmo ele estando de boné e sem peruca, não tinha volta para mim. Ali eu não enxergava mais o homem Victor, mas sim a queen Jessie. Não sei explicar muito bem por que razão um rosto inteiro maquiado não foi o necessário para isso acontecer, mas sim uma meia-calça. É quase um choque. Os trejeitos que começaram a atrair meu olhar, em meio ao processo de maquiagem, agora haviam duplicado enquanto Jessie se olhava em um espelho grande de parede. Foi para o quarto novamente e, dessa vez, voltou vestindo um cropped top, aquelas blusinhas curtas, sabe? A peruca ruiva, quase laranja, estava em sua mão. Cabelos compridos sendo penteados e cuidados sem nem estarem na cabeça de alguém. Para colocar a peruca um pouco de dramaticidade: Jessie jogou a cabeça para baixo, arrumou a picumã na cabeça e trouxe o tronco de volta para a posição ereta de uma maneira bem drag queen, já batendo o cabelo pela primeira vez na nossa frente.

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Lembra quando o Victor disse que a Jessie surgia realmente com a colocação da peruca? Era verdade. A timidez dele não dava nem sinal de aparecer, principalmente quando um sapato de salto alto deu o toque final ao look. “Podemos tirar algumas fotos?”, perguntamos. “Mas é claro”, ela respondeu. E “algumas fotos” viraram muitas fotos. “Vou atualizar em todas as redes sociais”, dizia ela. Finalizamos a entrevista, nos despedimos e Jessie nos acompanhou - totalmente montada - até a portaria. As fotos se encerraram quase no portão, já que a luz natural estava ótima e não poderia ser desperdiçada.

Foto: Mariana Pellegrini
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